Resenha de livro: Vox, de Christina Dalcher

Um governo totalitário, misógino e fundamentalista religioso chegou ao poder, e as primeiras a perderem seus direitos foram as mulheres e as pessoas homossexuais. Embora pareça demais com a realidade de certos países, estamos falando do contexto do romance Vox, de Christina Dalcher.

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Chamado por muitos de “o novo Conto da Aia” — numa comparação do tipo que me incomoda um bocado — Vox se passa nos Estados Unidos da América, num futuro não muito distante, em que um governo de extrema direita chegou ao poder de maneira legítima explorando a ignorância e ódio das massas.

Nesse contexto, a perseguição e a perda de direitos são dos primeiros efeitos que determinados segmentos da sociedade sofrem na carne, e embora a narrativa não economize na descrição dos horrores por que passam algumas minorias (como as pessoas homossexuais), é sobre o que acontece às mulheres que a história se desenrola.

Christina Dalcher, autora

As mulheres além de perderem o direito de trabalhar, de exercer uma profissão, também não podem mais viajar, nem votar, nem ter conta em banco, nem ser solteiras. As meninas já não aprendem mais a ler e a escrever, sendo ensinadas a ser uma “boa esposa”: aprendem corte e costura, culinária, etc.

Não que tudo isso seja pouco a se perder, mas nada se compara ao fato de elas perderem também o direito de falar: todas as mulheres e meninas são limitadas ao máximo de 100 palavras por dia, que são contadas por um dispositivo que é instalado em seus pulsos. Caso a mulher exceda a cota diária ela começa a sofrer choques elétricos de intensidade crescente, com o potencial de matar a pessoa com apenas 10 palavras a mais do que o permitido.

A média diária de palavras que uma pessoa fala é 16.000. Faça as contas.

É nesse contexto que a protagonista, ex-Dra. Jean McClellan nos é apresentada. “Ex” porque, é claro, seu doutorado foi invalidado pelas novas leis. Ela é uma importantíssima neurolinguista, a narradora da história, que revela que apesar de ser uma vítima do novo regime também se considera uma das culpadas pelo fato de ter ficado neutra em momentos anteriores.

O ponto de virada acontece quando o irmão do presidente sofre um acidente e o talento e os conhecimentos de Jean são requisitados para devolver-lhe a expressão, e ela tem que decidir entre ajudar ou não, e se sim a que custo.

Vox é uma leitura dolorida

Imagino que para as mulheres seja bem pior do que para mim, homem. Mas o fato é que Vox é doloroso de se ler, é indignante. Acredito que o principal fomentador dessa dor seja o fato de que a distopia descrita por Dalcher é extremamente verossímil, e qualquer pessoa com um pingo de senso de realidade vai identificar a semelhança de tudo o que precedeu o regime retratado no livro com a realidade em que vivemos, com suas polarizações ainda mais exacerbadas desde 2018.

A personagem principal é a narradora, e o único ponto de vista do livro, o que é muito justo considerando a que ela se vê submetida pelo regime político. Com isso acabamos tendo contato com mais do que fatos: temos acesso aos sentimentos de Jean, seus remorsos, seus segredos.

Não foi por uma ou por duas vezes que tive ímpeto de jogar o Kindle na parede e interromper de vez a leitura de Vox. O que prova o quanto a obra é necessária e importante.

Sinopse de Vox

Na “orelha” do livro (na edição em papel) há uma sinopse da obra escrita em apenas 100 palavras.

Uma distopia atual, próxima dos dias de hoje, sobre empoderamento e luta feminina.

O governo decreta que as mulheres só podem falar 100 palavras por dia. A Dra. Jean McClellan está em negação, não acredita que isso esteja acontecendo de verdade.

Em pouco tempo também são impedidas de trabalhar e os professores não ensinam mais as meninas a ler e escrever. Antes, cada pessoa falava em média 16 mil palavras por dia, mas agora as mulheres só têm 100 palavras para se fazer ouvir.

Lutando por si mesma, sua filha e todas as mulheres silenciadas, Jean vai reivindicar sua voz.

Administrador de sistemas, CEO da PortoFácil, humanista, progressista, apreciador de computadores e bugigangas eletrônicas, acredita que os blogs nunca morrerão, por mais que as redes sociais pareçam tão sedutoras para as grandes massas.

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