Resenha (com spoilers): Coringa (2019)

Um dos filmes mais pertubadores do cinema, uma verdadeira obra-prima, o filme escrito por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix é um soco no estômago de quem tem um pingo de sensibilidade.

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Fui ver Coringa (a versão de 2019) logo na sua estreia. Embora tenha tentado ficar longe de todos os spoilers possíveis, eu já sabia mais ou menos do que tratava o filme, e sabia o essencial: não é um filme de super-heroi, não há a menor condição de comparar esta obra com Aquaman ou Mulher Maravilha, por exemplo.

Entretanto, cheguei à sala de cinema com um alto nível de expectativa, e devo ser honesto: ela não só foi atendida como foi enormemente superada!

Coringa é um filme sobre um personagem, que calha de nos quadrinhos e em outras mídias ser o inimigo mortal do Batman. Mas na prática, não faz a menor falta ter lido ou visto qualquer coisa antes para apreciar esta produção.

Na história original, se não me falha a memória, o Coringa é um comediante que caiu em um barril de produtos químicos e saiu de lá transformado, com cabelo verde e pele branca de tão pálida, e com os miolos moles ou fora do lugar — razão pela qual ele fica fazendo maldades que implicam a necessidade de o homem morcego acabar com a raça dele.

Já na história contada por Todd Phillips não existe acidente com efeitos fantásticos, como num antimilagre: o que vemos é um Arthur Fleck lutando com todas as suas forças para vencer a violência gratuita, a doença mental, o abandono, a desesperança.

A pior parte de se ter uma doença mental é que esperam que você se comporte como se não a tivesse.

Nos quadrinhos, o Coringa é transformado no que é de um momento para o outro. No filme sobre ele, vemos Arthur Fleck tornando-se o Coringa aos poucos, ao mesmo tempo em que tenta com todas as suas forças cumprir as ordens de sua mãe: levar alegria para as pessoas. Mas como levar alegria às pessoas se tudo o que ele tem são responsabilidades, traumas, um diagnóstico de doença mental e uma arma carregada?

É claro que a interpretação visceral de Joaquin Phoenix é muito importante para criar a empatia que faz com que o espectador comemore quando ele finalmente reage à bala contra os três “cidadãos de bem” (jovens executivos das Indústrias Wayne) que o acossavam num vagão do metrô. É o talento de Phenix que faz com que na cena em que Fleck finalmente mata a mãe — o que para pessoas ditas “normais” poderia requerer anos de terapia para fazer de maneira metafórica — a plateia não emita um pio para condenar seu ato criminoso.

 A crítica social

Muita gente idiota saiu zurrando por aí que o filme Coringa tem “viés ideológico de esquerda”, que incita os pobres a matarem os ricos em vez de serem subservientes. Não é para estas cavalgaduras que escrevo, naturalmente.

Gotham City é retratada de uma maneira atemporal: embora pistas sugiram que a história aconteça em 1981 (porque os filmes que estavam em cartaz, cujos títulos aparecem no cenário, são todos deste ano: Um Tiro na Noite, As Duas Faces de Zorro e Excalibur), poderia ser em qualquer tempo, em qualquer grande cidade do mundo.

Arthur Fleck sofre constantes humilhações e abusos, sendo que dois dos antagonistas da história merecem uma análise.

Primeiro, temos Jonathan Wayne, que se alguém não conhece é o pai de Bruce Wayne, o Batman. Apoiado por uma grande parte da população ele tem a ambição de ser prefeito de Gotham City, e o personagem não deixa claro seus motivos; mas fica claro que não é para trabalhar em função das classes menos favorecidas, pois seu discurso literalmente diz que os pobres são meros palhaços, patéticos, indignos.

Segundo, mas não menos importante, temos Murray Franklin, um “show man” de quem Arthur Fleck e a mãe são fãs; Arthur sonha em ser como ele, ensaia os gestos, o discurso. E num dado momento ele aparece no programa de Franklin, mas não para ser reconhecido como comediante, como ser humano, nada: ele é dolorosamente ridicularizado, servindo de chacota por semanas.

Wayne e Franklin representam dois grandes “poderes paralelos” da nossa sociedade: os super-ricos e a mídia. E Arthur Fleck encarna a vítima destes dois tiranos, até conseguir combatê-los da única maneira que pode e sabe: sendo o Coringa.

O Melhor Coringa

Muitos atores já interpretaram o Coringa no Cinema, e cada um teve um Coringa diferente para interpretar. Não seria justo fazer uma comparação entre o de Jared Leto em Esquadrão Suicida, ou mesmo o de Jack Nicholson, com o de Joaquin Phoenix.

Isso porque este, reitero, é um filme sobre um personagem, não sobre super-herois e supervilões. É um filme denso, extremamente rico de significados, impactante; e se Phoenix teve a sorte de ser o ator escolhido para o papel, nós, espectadores, tivemos a sorte de vê-lo dando vida a um personagem complexo e extremamente rico.

Em outras palavras, são Coringas diferentes, entre os quais não dá para escolher o melhor comparando-os entre si.

Mas sem dúvida alguma, se eu já gostava de Joaquin Phoenix agora virei fã.

Administrador de sistemas, CEO da PortoFácil, humanista, progressista, apreciador de computadores e bugigangas eletrônicas, acredita que os blogs nunca morrerão, por mais que as redes sociais pareçam tão sedutoras para as grandes massas.

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